“O RIAS (Centro de Recuperação e Investigação de Animais Selvagens) nasceu em 2009, pertencendo à Associação ALDEIA. Situa-se dentro do Parque Natural da Ria Formosa, uma das sete maravilhas naturais de Portugal, a transbordar de biodiversidade e história. Tive o privilégio de o visitar no final de 2010. Arregalei os olhos e palpitou-me o coração quando lá entrei pela primeira vez. A bem dizer, era um hospital de animais selvagens com uma dinâmica desconhecida para um biólogo a terminar a licenciatura. Nesse tempo, o RIAS ainda tinha muito a crescer, tal como eu.
A oito de fevereiro de 2011, no dia a seguir a terminar o último exame do curso, iniciei um voluntariado de seis meses. Eu estava verde mas entusiasmado por começar a minha primeira experiência de trabalho. Estava disposto a fazer tudo e mais alguma coisa, e tive o que queria. Desde o início que me puseram à vontade. Cada dia era diferente do anterior, apesar de haver rotinas base como limpar as caixas de contenção dos animais em recobro, alimentação de todos os internados e a manutenção diária do espaço. Posso afirmar que limpei muita porcaria, valendo a pena cada ínfimo segundo pela experiência que adquiri e pelas pessoas que conheci. Em meros seis meses o RIAS superou tudo o que aprendera em três anos de faculdade. É efectivamente com as mãos na massa que se conhecem realidades e se evolui, e lá incutiram-me uma responsabilidade ambiental perante o planeta que professores universitários não conseguiram fazer.
Vi em directo, o que era conservação da natureza, esta sempre aliada às pessoas; porque sem elas não há esforço para o aplicar. Vi as dificuldades de financiamento para a área, o pequeno nicho da população que se preocupa e está disposto a ajudar sem criar desculpas e todo o processo de recuperação de um animal vindo do estado puro e selvagem. Refinei conhecimentos de biologia, ecologia, veterinária, comunicação e até de bricolagem. O procedimento geral do RIAS nunca foi linear, as suas valências estendiam-se desde a recepção dos animais, tratamentos simples como repouso e nutrição ou complexos que envolviam cirurgias e treinos de voo e libertação final, muitas vezes com presença do público.
Na parte de sensibilização ambiental, tal era feita com o apoio de uma sala aberta que servia como centro de interpretação. Recheada de restos de animais como patas e asas tratadas, esqueletos, frascos com pequenos animais conservados em álcool, guias de espécies e ainda vídeos e fotografias, tudo isto era combustível para abrir as almas dos visitantes ao mundo natural que os rodeava. Enquanto radiografias de animais internados, armadilhas e anzóis serviam de exemplo da negligência humana perante as criaturas do rico ecossistema da Ria Formosa e não só. Também neste local se aceitavam os donativos, estes muito importantes como complemento monetário para a subsistência do próprio RIAS e cuidados dos seus pacientes.
A mudança era constante, voluntários e estagiários em rotação, projectos em discussão, havia estruturas para erguer ou alterar, workshops para organizar, bases de dados para renovar, comida e menus específicos a preparar e contactos a fazer com outras entidades. Quanto à fauna, havia animais a passar do internamento para as câmaras externas, uns para examinar, outros para pesar e outros tantos para medicar. No meio da azáfama, havia também uns para soltar por fim, causando importantes sorrisos à equipa e outros para colocar no congelador pois não sobreviveram, causando mágoas e aprendizagens igualmente importantes. Recordo a vez em que segurei uma gaivota enquanto era eutanasiada e senti os seus últimos batimentos cardíacos, embaixadora dos animais que não conseguimos salvar.
O RIAS permitiu-me fazer e viver tanto. Lembro-me com profundo carinho quando de ir em sua representação ao ENEB em Peniche, ir a Mértola e a Castelo Branco libertar abutres, fazer o workshop de necropsias e o de fotografia, ir fazer apresentações a escolas, ajudar em monitorizações de aves na ETAR, levar crias de melro para casa para as alimentar durante a noite, acompanhar vigilantes da natureza em contagens de ninhos nas ilhas da Ria, dos convívios e festas entre a equipa e muito mais. Por estas razões, quando terminei o voluntariado, continuei a passar lá várias vezes por mês, para ajudar, levando comigo diversas pessoas para conhecerem o local e o magnífico trabalho. Enquanto lá estive, mesmo que o cansaço me acompanhasse, acordava sempre com vontade de fazer mais.
Uma das componentes por onde passei foi a colaboração no LIFE Trachemys, que tinha como objectivo retirar cágados invasores das lagoas do Algarve, enquanto fêmeas de cágado-de-carapaça-estriada nidificavam dentro de instalações adequadas no RIAS. Aí subi mais um patamar nas escadas da vida, percebendo ao mesmo tempo a máquina institucional que catalisa e regula esse tipo de projectos e faz de facto avançar aos poucos a conservação da natureza.
Guardo as memórias olfactivas de necrópsias, limpezas do biotério, e de poupas juvenis, sentindo que até hoje sou imune a muita coisa. Guardo com vincos felizes, fotografias de camaleões estrábicos, mochos zangados, momentos de lazer e dos amigos que fiz para o resto da vida.
Hoje em dia, mais de 10 anos depois, o RIAS encontra-se melhor que nunca. O trabalho realizado é famoso além Algarve e além-fronteiras, mas sobretudo reconhecido pelo seu valor tanto na sensibilização da população como na recuperação de animais. Recebe milhares de animais por ano, tendo aumentado o número de pessoas a trabalharem lá, e ainda bem. Consegue ser fonte de ciência devido aos vários projectos e extensa base de dados, especialmente no mundo da ornitologia. Hoje em dia tem um apoio extra do Município de Olhão, o qual percebeu o como este centro é uma mais-valia para todos. Não é de estranhar que o RIAS se tenha convertido num farol na vida de muitas pessoas com quem me cruzo, pois sabemos e sentimos que foi uma altura em que participámos num trabalho verdadeiramente crucial, sustentável e ético. Agora é seguir e crescer! Saudades eternas… À família RIAS, das pessoas que o construíram até às que o mantêm – um enorme obrigado!”
Mauro Hilário